31 agosto 2009

Dos livros

Passei uma boa parte da infância enfiada na biblioteca. Comecei pela biblioteca itinerante da Gulbenkian - a carrinha cinzenta que passava de vez em quando - passei pelo que foi a biblioteca municipal (a que não emprestava livros, só permitia a sua leitura no local) e depois mudei-me para o que se tornou a mistura das duas (daquela estante não se podem levar livros para casa, das outras podem-se levar 5 de cada vez). Passei ali muitas manhãs, e muitas tardes, a ler os livros mais pequenos, levava sempre 5 para casa e nas férias de verão e nas outras todos os dias ia trocar por mais uma dose. Lia os meus e a maior parte dos que as minhas irmãs requisitavam, e quando os livros vinham já muito manuseados, às vezes colava-lhes as capas ou uma ou outra folha solta com fita cola. Nunca escrevi nos livros, e que me lembre, não era costume eles virem rabiscados.
Quando ia aos meus avós, tanto de um lado da família como do outro, uma das actividades que levava a cabo enquanto os adultos se abstraíam da minha presença (vá lá, quando eu desaparecia da vista deles sem que eles notassem) era investigar as casas. Na casa dos meus avós paternos rebuscava os quartos e as estantes à procura de tesouros (havia tantos!) e encontrava bichos em álcool, um microscópio, um pífaro que rapidamente desapareceu (hoje desconfio que foi o meu pai, farto de o ouvir, que lhe deu sumiço), livros e mais livros, e componentes eléctricos que na altura não sabia identificar. Na casa dos meus avós maternos rebuscava o quarto da minha tia, que tinha um poster dos ABBA na parede, e gostava de ir ao sótão, onde havia imensas teias de aranhas, alguns buracos na madeira do soalho, e a luz do sol entrava pelas frestas das telhas. A minha avó dizia para não ir lá para cima, que havia ratos, mas eu não só nunca tinha visto nenhum como não tinha medo - suponho que, nessa altura, se algum dia tivesse encontrado um rato ainda o transformava em animal de estimação ou então torturava-o para que aprendesse a voar. E nesta casa não me lembro dos livros, mas lembro-me de encontrar dezenas de revistas juvenis do tempo do antigo regime, que eu li de uma ponta à outra (bem, quase), que tinham histórias por capítulos e me faziam ansiar pelo exemplar que faltava lá no meio.
Quando fui viver para o Porto, já com 18 anos, terminou a minha infância - pelo menos a parte que eu me dava ao luxo de ser infantil 95% do tempo. Não voltei a frequentar bibliotecas por prazer, apenas por necessidade, não voltei a rir às gargalhadas sob o olhar severo da bibliotecária (que nunca acreditou que eu lia os livros que levava para casa, e nem lhe passou pela cabeça que eu também lesse os outros que as minhas irmãs traziam com elas), nem voltei a ler livros velhos em casa de familiares, e a coisa mais parecida com ler livros que passaram de mão em mão era partilhar os livros que comprava com as minhas irmãs e, de vez em quando, pedir um emprestado às amigas.
E depois...
...fui de férias. Encontrei uma estante com livros a chamar por mim. Livros deixados por outros viajantes, uns novos, provavelmente lidos apenas uma vez, outros semi-novos, e outros velhos, de folhas soltas e fita cola a prender a capa. E redescobri o prazer de ler um livro que já foi folheado uma e outra vez, de ler uma história que nitidamente já deu prazer a outras pessoas, de tocar aquelas páginas que já tinham sido tocadas por muitos outros dedos. Tenho saudades da "minha" bibilioteca, que funcionava num edifício antigo, de rés-do-chão e primeiro andar, das escadas que rangiam, do soalho de manteiga, do boneco da máquina de bolas-surpresa na loja do outro lado da estrada que dizia, em espanhol, "holla, como te llamas? quiero ser como tu. a ver se puedes divinar" todo o dia, sem se cansar, sem me incomodar.

(os meus vizinhos têm uma biblioteca imensa na cave. vou começar a levar livros emprestados.)

9 comentários:

  1. A Fagulha?!
    Tu também leste a Fagulha?

    Se calhar tiveste acesso aos números que me faltaram naquele verão que passei num solar perto de Cabeceiras de Basto onde nem electricidade havia!

    (agora, visto a tanta distância, a Fagulha dá-me vontade de rir - era um mundo um bocadinho enfim como direi)

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  2. Ah pois, eu também li a Fagulha. Uma data delas encontrei-as em casa dos meus avós maternos, e, uns anos mais tarde (acho), fiquei toda contente quando encontrei mais umas num palheiro dos meus avós paternos. :)
    (eu lia quase tudo o que me aparecia à frente. também li os livros da escola primária de antes de eu ter nascido, e uns livros com um português antes de algum acordo ortográfico ;) de que nunca ouvi falar...)

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  3. Eu uns anos depois até li os Harlequins da minha tia, muito excitada com tanto mundo novo. Até descobrir que eram todos iguais, o que lhes tirou muito encanto...

    PS: Hoje o Bandeira também escreve uns posts muito giros sobre bibliotecas...

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  4. Andamos em círculos: a io do Amor e Outros Desastres, começou a falar de bibliotecas por causa dos posts do Bandeira, e eu disse-lhe que aqui a nossa snow também lhe tinha dado a mesma febre.
    Será a tal gripe de não sei que letras?

    Eu também li os livros da escola primária do meu pai. Na terceira classe tinha imensa mitologia negra, e mais uma descrição do heroísmo dos açorianos pescadores de baleias.

    Harlequim? O que era isso? Estou a ver que tenho uma grave lacuna na minha cultura geral.
    Mas li uma Corin Tellado. Nunca mais me esqueço. As miúdas que moravam juntas num apartamento e liam com a luz que vinha do candeeiro da rua, o rapaz lindíssimo no descapotável vermelho, e ela de fato de banho às bolinhas. Durante uns tempos, achei que bastava um fato de banho às bolinhas e tudo me correria de feição.

    E alguém lia livros de cowboys? Aqueles fininhos, que tinham sempre a mesma história (a miúda com cintura de vespa, linda como o caraças, o mau, e o bom que a meio da história levava uma bofetada da miúda e no fim lhe punha a mão na cintura - "a estreitava" - e lhe dava um grande beijo?
    Ah, grandes manhãs de domingo!

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  5. A mim deu-me a febre por causa daquele livro que já tinha falado ali em baixo, aquele que se estava quase a desfazer (chamava-se "Copper Beech", da Maeve Binchy, a minha autora deste verão).

    Acho que nunca li nem Harlequim nem Corin Tellado (e só sabia o que eram os livros da Harlequim, da Corin Tellado só ouvi falar há pouco tempo), mas quando tinha 11 anos uma velhota inglesa ofereceu-me um daqueles romances da Penguin, que devem ser parecidos. Devo ter aprendido mais inglês nesse verão do que no ano lectivo inteiro ;).

    Havia um livro de cowboys na estante dos livros dos meus pais, mas nunca li. Era mais "os cinco", "os sete", as gémeas, e os "uma aventura". E todos vindos da biblioteca, menos os das gémeas que foi a minha mãe que ofereceu. (Mas da biblioteca li muito mais coisas. Por exemplo, o "Momo", parece que por aqui é leitura obrigatória, esse ficou-me cá gravado.)

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  6. Se o livro de cowboys foi comprado pelos teus pais, duvido que tivesse o altíssimo nível literário dos meus...
    ;-)

    A colecção "uma aventura" chegou quando eu já não lia essas cowboyadas. Por aqui se nota que temos um ou dois meses de diferença.
    E a Odette de Saint-Maurice? Quem leu? (o meu preferido era o "Setembro, que grande mês")

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  7. Eu li a Odette toda, numa reediçao do IPJ. Só gostas do Setembro porque é quando o Paulo beija a Ana, admite lá. Por falar nisso, se tiveres aquele que conta o resto da vida da Ana e da Rosarinho, eu sou compradora das fotocópias, ou alugo!

    Se te falta saber o que é o Harlequim, escapa-te muita coisa importante sobre as donas de casa portuguesas. Só digo isto: poe o Henry Miller a um canto.

    PS: Essa minha tia também tinha cowboys, mas acho que os devia ter comprado por engano.

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  8. PS:Antes que me fique a fama de especialista de novelas de cordel: o "até lia" estava ali para demonstrar que eu lia mesmo tudo o que me aparecia. Uns Veroes mais tarde, até li as obras quase completas do Júlio Dinis.

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  9. Eu fiz uma leitura incompleta da obra completa de Júlio Dinis: na parte em que ele começava a descrever o céu e quejandos, eu saltava para a frente.

    Já me esqueci de praticamente tudo da OSM. Lembro-me de o ambiente de Setembro ser muito bonito, mais nada. E depois há um Pedro com olhos cor de azeitona (ai!), e um beijo que foi realmente dado, em vez de roubado. E uma miúda que vira à esquerda e vai a um funeral vestida de vermelho porque vinha de um comício.

    Acho que hoje não teria paciência para reler isso. Mas outro dia li um livro dos Cinco (OK, também saltei a parte das sanduiches e dos sconnes, pelo que li num instantinho) e aquela magia infantil continuava lá dentro. Não contes a ninguém.

    É pena não haver um alfarrabista português na internet para tu poderes encontrar facilmente esse da Ana e da Rosarinho. Ou então, os alfarrabistas todos juntos, isso é que seria.
    Mais um nicho de mercado (passo a vida a descobrir nichos de mercado).

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