23 março 2014

Memórias de uma cozinha

Há muitos anos atrás - há várias vidas atrás - vivi num apartamento algo peculiar. Era um bom apartamento, espaçoso, luminoso, tinha sido recentemente renovado, tudo nele gritava "novo começo". Trouxe as minhas tralhas todas quando me mudei, que não eram muitas, espalhei-as pela casa por forma a parecer mais ocupada do que realmente estava, e em breve descobri o problema. A cozinha, gira, com focos de halogénio que eu achava o máximo (nunca tinha tido nada do género), azulejos brancos que ainda tinham pó aquando da mudança, espaço para refeições - o que no Porto era uma raridade - lavandaria (marquise, vá), equipada, o que me dava imenso jeito porque não podia estar a investir numa cozinha, tinha um problema relativamente grave. Não era o facto de o isolamento não ser grande coisa e mesmo com a marquise fechada e a porta de acesso fechada ainda assim entrar ar pelas frestas, pelo que no inverno estava sempre um bocado frio. Era o fogão. O senhorio tinha posto um fogão a gás, novo, que, por sorte, tinha um disco eléctrico. Ora isto em si não teria nada de especial, se o fogão funcionasse. No entanto, o artista que se lembrou de pôr ali um fogão a gás não reparou que o dito estava preparado para ligação a gás natural (quer era uma novidade na altura) e não tinha possibilidade de ser ligado a gás de botija. E o prédio não tinha gás natural.
O tempo todo que vivi naquela casa, especializei-me em cozinhar fosse o que fosse recorrendo a uma panela, e um microondas. Também não tinha forno. Carne estufada (vaca, perú ou frango) com acompanhamento de legumes (cenoura, ervilhas, feijão verde, tomate) e hidratos de carbono (arroz, batata ou massa). Parecendo que não, isto dava uma data de variações da mesma coisa. Não me lembro como, mas sei que também fazia douradinhos com arroz (provavelmente arroz de sobras aquecido no microondas e douradinhos no disco eléctrico). E atum com salada russa ou salada de grão de bico. De sobremesa havia fruta, pois, ou salada de frutas, ou iogurtes. Só na vida seguinte comecei a fazer bolos e outros doces. Às vezes, também fazia sopa - podia fazer a sopa primeiro e depois usar o disco para o que mais viesse, ou simplesmente fazer sopa quando já tivesse para jantar sobras de outra refeição.

Tantos anos depois, sempre que faço "tudo numa panela" lembro-me daquele apartamento. Do cheiro a renovação, do início de uma vida nova. Dentro de tantas limitações que tinha, o tanto de bom que tive ali. O sol a bater-me na cara ao acordar todas as manhãs, causando-me uma boa disposição irritante. Dos jantares com os amigos, os sofás insufláveis do clix.pt (eu tinha lá dinheiro para um sofá a sério) o ventilador e uma mantinha. O jogo do astérix no computador com o puto, com joysticks que eram uma porcaria e que tinham que ser periodicamente abertos para reposicionar os contactos de metal com fita cola. A vez que meti gasóleo no carro a gasolina - a tragédia - a caminho do aeroporto para ir buscar um dinamarquês que nos trouxe os melhores bombons de sempre. Os meses que esticavam para lá do dinheiro, a ginástica financeira que fiz enquanto vivi ali. O puto a pedir um Winnie Pooh grande, e eu a ter que lhe explicar que não tinha dinheiro para lho comprar, e ele que nunca fazia cenas, lágrimas a escorrer pela cara abaixo.
A vizinhança, não muito recomendável, apesar da avenida larga e o colégio "bem" mesmo ali ao lado. O assalto ao meu carro uma noite, o estrago na porta, nada roubado. A cena de faca e alguidar, da vez que os vizinhos andaram à pancada e a polícia teve que intervir. A vizinha que ficou com o dinheiro do condomínio e nem passou recibo nem entregou o dinheiro. Soube mais tarde que tinha problemas financeiros. Teríamos todos, possivelmente.
Os dias de sol. Tantos dias de sol, e como tudo resplandecia durante o dia, a árvore do pátio, o passeio, o sorriso do puto. A outra vizinha, que se ofereceu para tomar conta dele se algum dia precisasse - nunca pedi, não tinha forças para tanto.

Hoje pedi a uma amiga para usar o forno dela. Fiz bolos, ela fez-me o jantar. Ela ficou felicíssima por poder ajudar. Eu ainda estou a aprender a aceitar. Há umas vidas atrás, não teria sido capaz sequer de pedir ajuda.

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