Chegam aos 5000 habitantes, e pensam, ena, tanta gente, devíamos ser cidade. Começam pelos semáforos, para regularem a meia dúzia de carros que passam nos dias de feira. Depois pelos GNR muito sérios, que isto agora já não é como nas aldeias, a multar o pessoal que não atravessa na passadeira. Mantêm a hora de almoço dos establecimentos comerciais porque afinal os donos já são velhos e não sabem nada dessas coisas do progresso, mas entretando abriram os Lidls e Ecomarchés, e os chineses, ai os chineses, e o pessoal até pode fazer compras à hora do almoço, mais à noitinha e até ao domingo, apesar dos veementes protestos do padre da terra e da associação de comerciantes, os tais velhos ultrapassados que costumavam comandar as horas de expediente das lojas todas (apesar do jeito ocasional que o ti António do minimercado fazia aos vizinhos) e ainda a feira anual do padroeiro da terreola, aproveitada como montra de exposição das alfaias agrícolas e local de espectáculo para os cantores pimba do momento, que por muito que se esforçem não puxam ninguém a mexer-se, que ali não há grandes motivos para cantar e abanar o capacete, deve ser por se terem esquecido de montar barraquinhas de bebidas alcoólicas e se terem limitado ao café e à KAS. Ah, e pela quantidade de velhos, de idade e de espírito.
Depois tem que vir mais progresso, fazem-se uns arruamentos e muitas rotundas, porque parece bem e sempre dá que fazer ao ti Manel, contratam-se uns jardineiros para tratarem das flores e limparem canteiros, compram-se mais enfeites de Natal e aumenta-se a dose de fogo de artifício do Natal e também a da festa do santo, que agora a terra já é grande, uma cidade como deve ser. Mas isto não chega, porque a cidade não pode parar, mesmo que esteja esquecida no meio do nada, onde nem o diabo se lembra de ir atentar as pessoas, e alguém tem a ideia peregrina que, já que a agricultura não dá nada, não há condições, os campos são pequenos e os donos velhos, e os filhos mudaram-se todos para longe e na terra ninguém quer saber de sujar as mãos, então vamos mas é virarmo-nos para o turismo. E então dão um jeito às aldeias, fazem mais umas estradinhas, limpam as fachadas das igrejas e capelas, fazem uns anúncios-reportagens na televisão e dizem aos turistas, venham até cá ver a nossa bela terra, com esta bela paisagem, e onde se podem aborrecer de morte em 3 dias que aqui a única sala de cinema é tão grande como a sala de jantar do Jaquim e por muito que queiram ir às compras, só terão sorte se vierem à cooperativa durante a semana e adquirirem o nosso azeite que é mesmo o melhor do mundo e o vinho que também não é mau.
E como não há turismo que se preze sem água, trata-se logo de promover a água mais próxima, seja ela um rio, uma barragem ou uma piscina-tanque na pensão da terra. E se não houver, vai-se para o meio do monte, onde costumava haver uma paisagem linda e gafanhotos e giestas à fartazana, mas que agora é dominada por meia dúzia de geradores eólicos que mais ninguém queria, e faz-se lá um buraco e põe-se a madeira ou a pedra da região à volta e chama-se-lhe spa, que é o que os turistas gostam. E se houver rios, pois que se façam passeios de barco, e campeonatos de jetski, que estas águas aqui estavam limpinhas de mais e os locais não merecem tomar banho em tanta limpidez. E já agora, com tanta terra abandonada, faz-se também um campo de golfe, que o golfe é que está a dar e já que não há mar, ao menos que haja golfe, sempre é uma actividade compatível com a ideia de calma e sossego que as pessoas têm do campo, mesmo que nesse campo esteja uma cidade. E para os que não gostam da calma, pode-se alugar umas motas, ou moto quatro que agora estão na moda, para darem uns passeios e assustarem as galinhas d'água e os javalis.
E o terreno onde se fazia a feira anual pode-se aproveitar durante todo ano, passa a chamar-se parque de exposições e podem-se ir fazendo mais feiras temáticas, a ver se o turista vem, que aqui não se passa mesmo nada, os restaurantes estão vazios, os cafés só dois ou três é que se safam e os comércios a mesma coisa, e o resto é paisagem, que só não fecha porque o dono tem que se ocupar com alguma coisa e já não tem idade para mais e afinal nem tem que pagar renda.
E as pessoas andam contentes, que o próximo projecto é que vai ser (nunca é), agora é que isto vai andar para a frente (fica sempre no mesmo sítio), os turistas vão vir (alguns até vêm) e nunca mais vão querer ir para outro sítio (fartam-se logo da pacatez e do frio ou calor extremos, e fogem para o bule-bule da cidade deles), e vai haver mais dinheiro (não vai), e a prosperidade chegará (não chega). E apesar de tudo, as coisas vão ficando na mesma, continua a haver feira, o mercado continua a atrair a mesma gente de sempre, a senhora da sapataria continua a apenas encomendar um número de cada modelo de sapato, o retornado a vender roupa caríssima e a fazer saldos de no máximo 30% e a começá-los apenas na altura da antiga lei ou até depois, no inverno continua a sentir-se o cheiro a lenha das lareiras, no verão continua a fazer um calor de morrer, as silvas continuam a dar amoras nos terrenos por construir e os prédios enormes continuam vazios por dentro e a tapar o gerador eólico e o resto da paisagem ao longe.
E os filhos da terra, os que se foram embora (os filhos da mãe que se atreveram a abandonar aquele pedaço de fim de mundo e ainda se atrevem a voltar a pôr lá os pés), de cada vez que regressam sentem que mais um bocado lhes foi arrancado, com cada semáforo, cada rotunda, cada café passado de mãos, cada escola primária remodelada, cada fonte abrilhantada, cada casa antiga substituída por um prédio enorme que ficará meio vazio, cada gerador eólico no horizonte. E perguntam-se, será que ainda há algum sítio onde não se passe mesmo nada?
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