07 março 2008

A minha escola

Andei na única escola no concelho (preparatória e secundária, que naquela altura ainda havia escolas primárias em todas as aldeias), perdida no meio do nada dos montes, numa altura em que ainda não havia rankings (agora que há, está lá para o meio da tabela, mas no sítio onde está não há concorrência, e os alunos vêm de todos os meios sociais que há naquela terra), para onde os professores não queriam ir, onde a maior parte dos professores vinham de longe, alugavam quartos e iam "a casa" nos fins de semana que podiam, e onde muitas vezes as aulas de várias disciplinas começavam várias semanas depois do início oficial do ano lectivo, quando os últimos professores eram colocados por mini-concurso (seja lá isso o que for). Os professores que já lá estavam há muitos anos - os da terra, que davam aulas de matemática, física, química, biologia, português, inglês - davam explicações, os que iam e vinham todos os anos, sempre gente nova, às vezes pouco mais velhos que os alunos mais velhos da escola, esses ou se entregavam à depressão (uma expressão que na altura não se ouvia, mas bem se via como eles andavam tristes e desanimados, uns porque não conseguiam fazer-se respeitar, outros talvez com saudades da família, dos amigos, e da vida num sítio onde realmente se passasse alguma coisa), outros saíam à noite frequentemente, para as poucas discotecas do sítio, e outros ainda, dedicavam-se a actividades extra-curriculares (na altura não só eram completamente facultativas como só existiam se houvesse um professor caridoso e dedicado que as organizasse, em termos de tempo, espaço, contactos com outras escolas quando era caso disso, e motivação dos alunos, e isto, claro, sem receber um tostão).

Apesar das dificuldades - pois não havia dinheiro para laboratórios bem equipados, a sala de computadores tinha um ou dois que raramente era usados (como é que se mete uma turma inteira numa sala que dá para meia dúzia de pessoas?) - todos os anos havia uma massa crítica de professores que se dedicavam a fazer com que a escola fosse mais do que o sítio onde se ia às aulas. Ou não ia, pois se no inverno nevasse era feriado garantido, já que nem os professores nem parte dos alunos conseguia chegar à escola, uma vez que as estradas ficavam logo intransitáveis, e no verão às vezes havia alunos mais interessados em ir apanhar sol e dar uns mergulhos do que em ficar fechados dentro de uma sala de aulas.

Durante o tempo em que lá andei, lembro-me de muito amor à camisola de vários professores. Desde a professora de matemática, efectiva, que lançou um jornal de matemática e nos incentivava a participar em actividades nessa área, e que num ano esteve doente e não dava aulas, mas cumpria o seu horário (estava lá sempre) na biblioteca, onde ajudava os alunos que lhe pediam (andavam sempre de roda dela). A professora de física, também efectiva, que organizava o dia da física, e nos levava a participar em actividades relacionadas com a disciplina, que mantinha a fama de ser má e estar sempre aos berros (e resultava, na aula dela ninguém se atrevia a perturbar), mas que era um amor de pessoa. Outro professor de matemática, efectivo, que dava treinos de basquet e ténis de mesa, um professor de educação física, efectivo, que treinava as equipas de futebol e estava encarregue do atletismo (encontrar atletas e levá-los a campeonatos, não sei se havia treinos). Um professor de biologia, efectivo, que também treinou a equipa de futebol feminino. Uma professora de educação física que só esteve lá um ano, treinava os rapazes em basquet de uma forma que eles nunca esquecerão: apesar de eu não lá estar (o treinador das raparigas era o professor de matemática) lembro-me bem de como eles falavam de que se se atrasassem tinham que dar mais umas corridas à volta do campo, se falhassem no treino de lançamentos, tinham que fazer 5 flexões, e mais coisas desse género, e a verdade é que eles adoravam a mulher (quanto mais me bates...). Um professor de electrotecnia que também só lá esteve um ano organizou um concurso que na altura era popular na televisão, em que utilizava material eléctrico que provavelmente pagou do seu bolso, outro professor de português que também só lá esteve um ano pôs a escola a editar um jornal conjunto (até aí quando havia jornal era sempre só de um dos anos lectivos ou até só de uma turma). As professoras de inglês organizavam viagens educativas a Inglaterra para os alunos do 11°ano, com passeios a museus, universidades e monumentos, e em que os alunos ficavam durante aqueles dias a viver com famílias inglesas, para praticar a língua o mais possível. E isto, só para falar de professores que eu conhecia bem, pois concerteza que outros havia que organizaram outras coisas com os seus alunos e que eu desconheço. E a cereja no cimo do bolo é que quando precisei de ajuda, fora das aulas, e que às vezes implicava os professores estarem disponíveis fora do seu horário de trabalho, para projectos que nem sequer tinham directamente nada a ver com a escola, sempre tive professores disponíveis a ajudar, e isto também foi verdade no caso de professores que não me davam (nem nunca deram) aulas a mim ou aos colegas que estavam integrados nesses projectos.

Nesta escola havia de tudo. Betinhos, queques, rufias, violência, facadas, ameaças de bomba, meninos bem, marrões, baldas, revoltados, metaleiros, tudo. Bons alunos, maus alunos, alunos médios. Rapazes giros (tão giros!), médios, e feios, altos, baixos, gordos (um ou dois, naquele tempo não havia gordos) médios e magros. Bons professores, maus professores, professores assim-assim. Contínuos chatos, que não nos deixavam usar o ginásio quando não tínhamos aulas, ou nos impediam de jogar a bola contra a parede do edifício da manutenção, nas traseiras da escola, ou que não nos deixavam ir buscar a bola ao telhado quando ela lá ia parar. E contínuos bons, que se preocupavam connosco, e nos davam o almoço se por algum motivo não tivéssemos conseguido almoçar nesse dia.

Enquanto os anos iam passado e eu estava nesta escola, nesta terra esquecida, achava que não tinha tido as oportunidades que os miúdos da minha idade que moravam em cidades grandes teriam. Só muito mais tarde me apercebi que tive quase todas as oportunidades que precisava, e acabei por fazer muito mais coisas do que quase todos os estudantes que conheci mais tarde, e que moravam em grandes cidades. A verdade é que apesar de tudo, ou por causa disto tudo (e muito mais), fui muito feliz na minha escola.

4 comentários:

  1. Tao lindo Snow. Caiu-me uma lagrima rosto abaixo porque sei perfeitamente o que sentes, porque dentro de mim vive igualzinho. Fui a crianca mais feliz da pessoas que conheco e conheco muuita gente que vem de sitios com mais pontencialidades para isso...
    (vou colar o teu texto no meu blog, devidamente sinalizado, claro esta!)

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  2. Este comentário foi removido pelo autor.

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  3. cromossomaX: estás à vontade, querida. :)

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  4. ...são das coisas simples que o passado, presente [e porque não fturo?] são tão propensos a serem os mais cheios de significado... As memórias ternas e doces que só os mais simples momentos permitem... Isso não tem preço, nem tempo ou espaço...
    Tudo de bom
    Ana Pacheco

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