18 abril 2014

EDO*

(título roubado à Wallis)

Antes era esquecido e ostracizado, mas agora parece-me que já só é ostracizado. Os geradores eólicos a lixar a paisagem toda, a juntar aos postes de electricidade - nunca tinha reparado na quantidade de postes de electricidade que há pelos montes fora, bem sei que é assim que transportamos a electricidade das barragens limpas e ecológicas para o resto do país, mas caramba, será que era mesmo necessário tantos postes gigantes e cabos de diâmetro com potencial para estragar qualquer fotografia. Os tractores fazem barulho de dia, de noite são os cães, que o meu receio de cães vem destas matilhas de cães sem dono, cães sem raça arraçados de lobos, mais os cães de guarda que mordem a quem lhes dá de comer, quanto mais a quem nem conhecem. Comunicam uns com os outros à noite, os cães, têm conversas à distância, ouvem-se a centenas de metros uns dos outros.
As maravilhas outrora desconhecidas agora aparecem na televisão como se fossem a melhor coisa desde sempre, e são invadidas por gente que fala de maneira esquisita e anda pelos caminhos do circuito de manutenção que antigamente era um eufemismo para "fizemos um trilho à volta da barragem a ver se cola, mas ninguém liga nenhuma" e hoje em dia é o grande objectivo da malta que faz 200 quilómetros de carro para chegar ao interior esquecido e depois salta do jipe com botas de caminhada e vai dar um passeio. Ouvem-se as suas conversas a umas largas dezenas de metros, alto e bom som, esta malta não percebe que sem paredes a voz se propaga e toda a gente fica a saber as fofoquices, mesmo que não queira.
Gelados só no tempo deles, lá para fim de Junho, mesmo que estejam 27 graus (real feel 30ºC) e vento quente, mas nas tascas há sumol, cerveja e até ice tea e fanta, apesar de lá dentro cheirar a lareira e a madeira queimada, às tantas andaram a fazer alguma coisa com porco, eu pensava que a época disso era lá para Novembro, mas eu não sou bem uma rapariga da aldeia, nunca vi a matança do porco, só ouvi uma vez e fiquei para nunca mais - coitado do porco, guinchava que se desunhava, e continuou a guinchar por horas, pelo menos pareceram horas. Já não sei como são as tascas, mas ao fim da tarde há meia dúzia de gatos pingados - nem tanto - que as frequentam, café ao balcão, cerveja na esplanada - se é que se pode chamar esplanada a 3 mesas em frente à porta. Há uns anos provavelmente ninguém bebia a cerveja na rua, mas nem as tascas escapam à lei do tabaco, e os homens rudes do campo também são forçados a fumar lá fora. Levam a cerveja com eles. Numa das mesas ficou um papel, com tracinhos e bolinhas, sinal que houve ali jogatana mais cedo. Depois do almoço, talvez. A tasca tem um cão, sem trela, que não dá confiança a ninguém, por vezes porta-se como um gato.
O rio continua no sítio, com corrente forte, sinal de que choveu, bicharada de todo o tamanho e feitio, aranhões de água, peixinhos, cobras, rãs a apanhar sol e aos saltos para a água, formigas gigantes, abelhas, zangões, vespas e moscardos, e as plantas que lhe dão aquele cheiro que só há ali, a verão e calor do meu. Estão a fazer uma ponte nova e nem assim passa por ali ninguém, um camião das obras de vez em quando, em terminando a construção com certeza haverá meia dúzia de carros por dia a a travessá-la, mas dizem-me que tinham que fazer uma nova, que a velha está quase a cair e era perigoso mantê-la. Preferia que tivessem restaurado a ponte velha, mas não se faz disso por cá, que desde os anos 80 que o que os políticos querem é betão em todo o lado, e as pontes antigas levavam muita pedra e isso não pode ser. Deve ser por causa do amor ao betão que temos aqueles geradores eólicos horríveis, aquele cinzento todo deve levar muito cimento. Betão e alcatrão, agora há para aí umas estradas (às moscas, óptimas para quem gosta de conduzir) que rasgam literalmente a paisagem, os campos, os montes, e se vêem ao longe. Deve ser o progresso, mas para a gente que por cá anda, cada vez menos, para os serviços públicos que vão desaparecendo - para dar lugar aos mesmos serviços fornecidos por privados, pois que os serviços fazem falta - é difícil encontrar áreas que ainda não tenham sido corrompidas pelo homem. Nem falo da agricultura, só de que gostava de ainda encontrar alguns sítios onde as estradas não poluíssem visualmente a paisagem, nem cabos eléctricos, nem postes, nem geradores eólicos. Não é fácil. Mais fácil é sentar-me num ermo e não ver ninguém durante horas, porque a verdade é que o interior é esquecido por isso mesmo, tem pouca gente, e a que tem também tem tendência a concentrar-se em cidades.
Vai haver morangos em breve, há imensas tiras de plástico preto a cobrir filas de morangueiros nos campos. Cerejeiras crescem à beira da estrada, como se tivessem nascido ali por acaso, consequência talvez de caroços atirados por quem passa. Lindas. Haverá cerejas em Junho, as primeiras, daquelas que vendem ainda com o pauzinho e às vezes as folhas.
Estamos em Abril e é quase Verão. Ainda agora cheguei e estou quase a ir embora.

3 comentários:

  1. "Comunicam uns com os outros à noite, os cães, têm conversas à distância, ouvem-se a centenas de metros uns dos outros.", meu deus, é tal e qual! penso exactamente o mesmo, naquelas noites quentes -de janelas abertas para correr um arzinho- em que não consigo dormir por causa do calor e do raio dos cães: 1º ladra um, depois outro, mais longe, e outro e por aí fora... dura horas, aqueles sacanas.
    Todos os anos anseio pela época das cerejeiras em flor (tão bonitas) e pelas cerejas, propriamente ditas, que nunca desiludem :)

    gostei tanto mas tanto deste texto. fiquei com uma lagriminha no canto do olho :)
    naturalmente porque reconheço esse interior que descreves e me reconheço nesta tua visão. ando há imenso tempo a pensar em escrever sobre isso, sobre a maneira como vejo a vida lá; essa vontade tem ficado retida por conta da quantidade de coisas que me lembro a propósito e que dariam um texto enorme. mas com isto fiquei mais motivada porque foi francamente inspirador. obrigada.
    (o EDO é roubado ao Herman e ao seu CREDO, o canal regional do EDO, a que eu achava muita graça ;))
    (e desculpa o testamento)

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  2. Ora essa, testamenta para aí ;)
    É por causa dos cães que não se pode dormir de janela aberta. Isso e os mosquitos, no verão, uma praga esses chupistas ;).
    (Obrigada :))

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